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A Coisa Pública
Luiz Carlos Bresser-Pereira
O Estado de
São Paulo, 01/09/95
A reforma do Estado tornou-se um tema essencial deste fim de
século não apenas porque é uma resposta à sua crise. Uma segunda razão está no fato
de que se tornou claro que a defesa do Estado enquanto "coisa pública" é uma
tarefa fundamental para a consolidação da democracia em todo o mundo. O objetivo da
reforma do Estado é proteger a res publica, é garantir que o Estado seja
efetivamente público, voltados para o atendimento dos cidadãos.
Público é o que é de todos e para todos. O Estado é
teoricamente o espaço da propriedade pública. Na prática só o será se a democracia
assegurar esse fato. Nas sociedades pré-democráticas o Estado era por definição
"privado": estava a serviço da classe ou do grupo poderoso que controlava o
Estado e, através dele, se apropriava do excedente social. O avanço da democracia é a
história da desprivatização do Estado.
Este avanço foi extraordinário nestes três últimos séculos.
Acompanhou a consolidação do capitalismo, ocorrendo em de três etapas. Em cada uma
delas um novo direito fundamental foi explicitado e sua defesa, institucionalizada. No
século dezoito, os direitos individuais protegendo os cidadãos contra o poder abusivo do
Estado e da aristocracia que o dominava foram afirmados pelos filósofos iluministas e por
duas revoluções: a americana e a francesa. No século dezenove eles foram implantados em
todas as constituições. Nesse mesmo século, os socialistas democráticos afirmaram os
direitos sociais dos pobres e dos trabalhadores, que, no século vinte, encontraram
guarida em todas as constituições e políticas governamentais.
Para afirmar os direitos individuais foi preciso também afirmar a
propriedade privada, e garanti-la através do Estado Liberal. Para garantir os direitos
sociais, foi necessário reservar um espaço maior para a propriedade pública através do
Estado Social. Resultou daí o histórico conflito entre a burguesia, para quem a
propriedade privada é essencial e o Estado Liberal aparentemente suficiente, e os
trabalhadores, que necessitam do Estado Social para verem seus direitos sociais
garantidos. Um conflito que se radicalizou na medida em que uma nova classe emergente, a
burocracia, pretendeu falar pelos trabalhadores e definir o socialismo como sendo oposto
ao liberalismo, exigindo a eliminação da propriedade privada. Na verdade, entretanto, o
Estado Social não era uma alternativa ao Estado Liberal, mas uma segunda etapa do avanço
da democracia.
Explicitados e defendidos, pelo menos em princípio, os direitos
individuais (de cada um) e sociais (dos grupos mais fracos), faltava definir e proteger os
direitos de todos coletivamente. Esses direitos sequer têm um nome assente na filosofia
política. Podem ser chamados de "direitos públicos". São os direitos à coisa
pública.
Neste século, particularmente na sua segunda metade, este problema
finalmente tornou-se central para o avanço da democracia. Não basta defender os direitos
individuais e os direitos sociais. É preciso defender o próprio Estado enquanto coisa
pública, enquanto provedor de serviços para toda a sociedade.
Para garantir os direitos individuais e sociais nas sociedades
capitalistas complexas em que vivemos tornou-se necessário desenvolver um aparelho do
Estado de dimensões respeitáveis. Um aparelho de Estado que não apenas detém uma
propriedade imobilizada imensa, mas também maneja um grande volume de recursos, na medida
em que é responsável pela cobrança de um volume de impostos que tende a aumentar à
medida que país mais se desenvolve, variando de um quarto à metade do produto social de
todos os países.
E tornou-se claro também que essa coisa pública, esse patrimônio
definido em termo de um estoque bens púbicos e de um fluxo de receitas tributárias,
podia ser - e, de fato, estava sendo - "privatizada", ou objeto de "rent
seeking" (busca de rendas).
Privatização do Estado ou busca de rendas são duas expressões
praticamente sinônimas. A primeira tem origem na esquerda, a segunda na direita.
Significam a obtenção de rendas ou vantagens econômicas que não derivam do livre jogo
do mercado, e que geralmente são fruto do uso indevido do Estado. Através da
privatização do Estado ou do "rent seeking" indivíduos e grupos se aproveitam
da coisa pública, sonegando impostos, fraudando licitações, obtendo subsídios e
incentivos injustificados, recebendo vencimentos desproporcionais ao serviço prestado ao
Estado (porque a remuneração é indevidamente alta e principalmente porque o trabalho
realizado é pouco ou nenhum), e auferindo aposentadorias e pensões que não têm
relação com as contribuições previdenciárias realizadas.
Diante desse fato, existem duas possibilidades de reforma. Uma é a
de reduzir o aparelho do Estado, privatizando formalmente o que puder melhor ser
controlado pelo mercado competitivo. Dessa forma se elimina o problema de proteger a coisa
pública. Esta estratégia, entretanto, encontra limites óbvios. Pode-se também aumentar
a esfera do público não-estatal, atribuindo-se à sociedade a responsabilidade por um
controle mais direto e por um financiamento parcial da de certas atividades nas quais não
esteja envolvido o exercício do poder de Estado.
Existe, entretanto, um grande número de funções do Estado que
não podem ser nem privatizadas, nem publicizadas, e que, não obstante, são vítimas
constantes da busca de rendas. Neste caso não resta outra alternativa senão tomar as
providências democráticas e participativas para impedir que capitalistas privatizem o
Estado através da corrupção e da obtenção de subsídios desnecessários e que
funcionários privatizem o Estado trabalhando pouco e mal e mantendo os serviços
públicos caros e de baixa qualidade.
Para obter esse resultado a estratégia burocrática de controles
rígidos dos processos administrativos representou, no passado, um avanço. Hoje, porém,
é essencial caminhar em direção a uma administração pública gerencial, orientada
para o controle eficiente dos resultados. Mas, mais do que isto, é preciso aprofundar o
processo democrático e participativo na administração pública. Os controles
burocráticos de auditoria permanecem necessários, mas correm sempre o risco de serem
mais caros do que os desvios. Os controles clássicos, realizados pelo parlamento e por
uma imprensa livre, continuam essenciais, mas não bastam. Adicionalmente a coisa pública
tem que ser protegida através do controle público direto e da participação efetiva dos
usuários dos serviços públicos na sua gestão. Só assim os direitos públicos poderão
ser garantidos.
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